“A literatura de cordel é um excelente meio para formar leitores”

Mari Bigio | Artista e professora relata sua experiência com a literatura de cordel e evidencia o potencial desse gênero para a educação infantil


Dez perguntas para

Mari Bigio

Cordelista, escritora, professora e contadora de histórias

Mari Bigio em uma de suas oficinas de cordel para crianças: “Pais, cuidadores, todo mundo pode e precisa se envolver nesse interesse comum de transformar o país numa nação leitora”. Foto: Edson Holanda/PCR

Por Livia Piccolo, Rede Galápagos, São Paulo

Mariane Bigio, mais conhecida como Mari Bigio, é uma artista de muitas facetas. Escritora, cantora, contadora de histórias e professora, transita entre linguagens e dá forma a livros, espetáculos de teatro, musicais e projetos para internet, sempre com um olhar ético e estético cuidadoso e amoroso para a infância. A partir do rico e tradicional universo do cordel brasileiro, a recifense Mari Bigio vem construindo ao longo dos anos uma trajetória inspiradora. “Comecei recitando nos mercados públicos da cidade e sempre digo que sou uma entusiasta da palavra”, conta ela. 

Cordel Animado, por exemploé um projeto que Mariane desenvolve com sua irmã, a multi-instrumentista Milla Bigio. Desde 2012 a dupla apresenta um espetáculo infantil que mistura cordel, música e sonoplastia, utilizando teatro de bonecos, mamulengo, fantoches e outros recursos cênicos. Recentemente, a artista lançou pela editora Companhia das Letras a coleção Canoa, dialogando com o cordel a partir de personagens clássicos da infância, como uma bruxa e um pirata. Em abril, Mari Bigio foi a  primeira autora convidada para o novo podcast do Itaú Cultural, Ficções: crianças, dedicado a obras de literatura infantil. O episódio Ficções: crianças – Aliens: a lição é narrado em rimas pela própria Mari. Além do trabalho como artista, ela realiza oficinas para crianças e educadores, em escolas e espaços culturais diversos. Na entrevista a seguir Mari conta como o cordel entrou em sua vida abrindo perspectivas para suas experiências em criação literária e em educação infantil.

NNotícias da Educação — Como começou sua relação com o cordel?

MMari Bigio — Gosto muito de falar sobre esse começo: o primeiro contato aconteceu na escola, nas aulas de literatura, onde conheci o Movimento Armorial, de Ariano Suassuna, e os cordéis apareciam como fonte de inspiração do artista. Fiquei deslumbrada e comecei a pesquisar, memorizar folhetos e poesias rimadas para declamar na classe e, depois, na faculdade. Meus colegas já me reconheciam como poeta. Nesse meio-tempo, descobri que minha mãe trabalhava com um cordelista. Quando fomos apresentados, descobri que José Honório era não apenas cordelista mas também o fundador da Unicordel, União dos Cordelistas de Pernambuco! Há quem queira chamar de coincidência. Honório me apadrinhou, começou a me levar para os recitais de literatura de cordel que aconteciam nos mercados públicos do Recife. Ele me incentivou a experimentar os primeiros versos autorais e me apresentou a outras mulheres cordelistas. Isso foi há 15 anos! Depois de tanto declamar, pesquisar e memorizar cordéis, arrisquei meu primeiro folheto: A mãe que pariu o mundo, uma versão feminina do mito da criação, que foi premiado em um concurso da prefeitura do Recife. Ali nascia a cordelista! Gosto de reforçar o papel da escola e dos professores nessa minha iniciação; sem eles eu não teria chegado até aqui. 

NComo o cordel pode estar presente na vida das crianças?

MQuando comecei a escrever cordel eu já brincava com o lúdico. Parece que a rima, a poesia, nos convida para o fantástico e o maravilhoso. Foi natural migrar para a literatura infantil, pois já nos primeiros anos como escritora o cordel me guiou com naturalidade. A musicalidade e a sonoridade dos cordéis viram brinquedos, sabe? Na época tinha pouca gente produzindo cordel para a infância. Eu me aprofundei no nicho, e hoje é minha especialidade. O cordel é mina de ouro pra quem trabalha com educação. Vale, e muito, apostar no cordel na escola, montar uma cordelteca, adotar títulos escritos em cordel ou mesmo apresentar os folhetos às crianças. O resultado é garantido: encantamento.



NVocê é atriz de teatro, escreve livros e também compõe e canta. Como é esse trânsito entre várias linguagens?

MDesde pequena eu brincava de escrever e de atuar, sempre contando ou cantando. Ganhei um gravador, com uns dez anos de idade, e gravava entrevistas imaginárias comigo mesma, dublando vozes de personagens inventados. Costumo me apresentar como entusiasta da palavra. Todas as linguagens, no meu fazer artístico, são permeadas pela palavra, pelas histórias. Nas canções eu conto histórias, nos cordéis, nos livros, nos programas de rádio e podcasts. Tudo conta, tudo canta.

“Se existem educação infantil e diversas especialidades médicas infantis, é preciso pensar a arte para as crianças com cuidado, pesquisa e muito afeto. Não pode ser qualquer coisa.”

NEm sua visão, qual a importância da arte voltada para a infância?

MA sociedade passou muito tempo sem dar a devida importância à infância. Recentemente descobrimos que essa fase, tão breve, faz toda a diferença no resto da vida inteira de um indivíduo! Cuidar da infância é cuidar da vida, das pessoas. É essencial. E esse cuidado passa pela garantia de acesso à educação, saúde, moradia, segurança e cultura. Se existem educação infantil e diversas especialidades médicas infantis, é preciso pensar a arte para as crianças com cuidado, pesquisa e muito afeto. Não pode ser qualquer coisa. 


NNo seu canal no YouTube há alguns vídeos em que você e Milla Bigio contam histórias do cordel, com recurso de acessibilidade, com tradução em Libras. Como a acessibilidade está presente em seus projetos?

MSempre que possível busco utilizar recursos de acessibilidade nos vídeos e nas apresentações ao vivo, mas confesso que ainda estou engatinhando nesse aspecto. Tenho buscado aprender mais sobre as ferramentas de acessibilidade, pois só assim podemos falar em democratização do acesso à cultura e inclusão.

NEm seus livros mais recentes, com ilustrações de Rodrigo Chedid, você traz personagens como uma bruxa que gosta de televisão e uma sereia que canta rock, sempre dialogando com a linguagem rimada dos cordéis. Como foi o processo criativo dessas obras?

MA coleção Canoa foi uma viagem deliciosa de embarcar! Os personagens foram escolhidos por fazer parte do imaginário infantil, mas a ideia foi justamente brincar um pouco com a quebra de estereótipos. Essa ruptura aparece tanto nos enredos como na estética dos livros: se de um lado eu evoco a tradição do cordel, patrimônio cultural nacional, de outro o Rodrigo propõe ilustrações bem contemporâneas, misturando referências de quadrinhos e cartuns. Foi uma brincadeira boa de fazer, e o tempo todo eu pude debater com a equipe editorial sobre os enredos, os personagens, as ilustrações e tudo que compõe a coleção. 

“A literatura infantil tem essa capacidade de emocionar as crianças de 0 a 130 anos! Um bom livro deixa a cabeça fervilhando, faz a gente se perguntar, se reconhecer, gargalhar ou chorar.”

NEm sua opinião, quais são os maiores desafios para os artistas que trabalham com a infância?

MSão tantos! Mas de cara eu penso no excesso de informação a que as crianças são submetidas atualmente. É muita tela, muito estímulo, e esse excesso chega cada vez mais cedo. Tenho tentado usar as ferramentas tecnológicas em favor das histórias, da música e do cordel. Tenho canal de vídeos, músicas e histórias nas plataformas digitais, ministro cursos on-line; na pandemia usei e abusei das telas para me comunicar com meu público, mas estamos carentes de presença, de atenção plena. E as histórias e leituras são caminhos para se fazer presente e criar vínculos. Então precisamos trabalhar para tirar as crianças das telas, oferecer entretenimento com viés artístico, cultural, ao mesmo tempo que não podemos ignorar que a arte também precisa e deve ocupar a rede, alcançando as crianças e famílias… ufa! Não é fácil, mas acho que muitos artistas brasileiros têm conseguido traçar um caminho equilibrado. 


NO que não pode faltar em um bom livro infantil?

MTenho uma vasta biblioteca de títulos infantis. Alguns deles me emocionam, me fazem rir, me provocam, tanto quanto um bom romance adulto faria. Acredito que a literatura infantil tem essa capacidade de emocionar as crianças de 0 a 130 anos! Um bom livro deixa a cabeça fervilhando, faz a gente se perguntar, se reconhecer, gargalhar ou chorar.

NComo aumentar o número de leitores do Brasil, em especial crianças e jovens? 

MAcredito que esse é um trabalho coletivo, pois é preciso uma aldeia inteira para cuidar de uma criança. É necessário que toda a sociedade se envolva para ampliar o acesso à leitura e também o interesse por ela, do macro ao micro, às políticas públicas, aos projetos sociais, ao trabalho de formiguinha que os mediadores de leitura fazem no seu dia a dia. Famílias, cuidadores, todo mundo pode e precisa se envolver nesse interesse comum de transformar o país numa nação leitora.


NComo são suas oficinas de literatura para crianças?

MEu costumo apresentar os cordéis em seu formato mais tradicional, de folhetinhos expostos num varal. Brincamos de descobrir como a rima funciona, e depois gosto de trazer um breve histórico da literatura de cordel no Brasil. Nesse percurso a gente conhece também a xilogravura e ainda brinca de fazer gravuras, usando técnicas que lembram as xilogravuras. Sempre gosto de finalizar com a criação literária, propondo a escrita de versinhos coletivos, com base no que descobrimos juntos. Minha ideia é fazer sempre uma vivência brincante, para que as crianças se apaixonem pelo gênero, assim como eu me apaixonei. Já faz alguns anos que ministro a oficina de contação de histórias para educadores e também sobre literatura de cordel. A busca é formar multiplicadores nessas vertentes, pois ambas podem ser utilizadas como recursos pedagógicos de peso. Durante a pandemia criei o EnContar, um curso on-line que reuniu, de maneira didática, minhas principais experiências como contadora de histórias nesses 15 anos de trajetória. A adesão foi incrível nas duas turmas que abri, e agora tenho levado esse curso em formato presencial para outros lugares, a convite de instituições, prefeituras ou via editais.


Fonte: Itaú Social 



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