O tacacá nosso de cada dia




O delicioso tacacá do Pará é pateteado por natureza e por isso, devemos manter nossos costumes, tomando-o sempre, como forma de prestígio, para um dos mais conceituados itens da culinária paraense. A crônica poética apresentada pelo autor, reflete o valor do tacacá, sendo que recebi por email , enviado por Cabôco Nirson. (PV). 


                              O TACACÁ
 
 
 "O tacacá, toma-se? bebe-se? sorve-se? saboreia-se? Não, O tacacá deseja-se, de repente, como se deseja uma mulher, como se deseja retornar ao amor da adolescência. O tacacá possui o toque agudo da saudade. A memória de seu sabor salgado e ar­dente assalta-nos sem aviso, em pleno dia, em determinadas horas de distração.. Naquele momento involuntário de repouso quando, por fim ao cair da tarde sobre o rio, respiramos. Certo e pequeno instante, dezenas de sugestões cruzam a mente. Todos os atos gratuitos e cheios de graça da vida: uma criança correndo na grama, braços em repouso e um regaço, mãe
 amamentando o filho, avião acendendo e apagando as luzes na bruma da noite, navio singrando a baía, luar úmido sobre igarapés - vontade de tomar tacacá. Desejo de tacacá. Porque, para tomá-lo, é preciso, antes
 de tudo, um ritual.
  É preciso que seja ao anoitecer. Ainda não de todo noite completa; ainda não dia findo. Àquela hora semi-crepuscular, indecisa e feminina quando, por fim, o céu se envolve de um azul-cinzento intenso ou
 aquela chuva antes da saída da lua. É preciso que estejamos cansados, tão fatigados que nada nos afigure mais necessá­rio, naquele momento, do que tomar um tacacá. Nem o bate-papo informal com o amigo. Nem o café na Central. Nem o olhar à mulher que passa. Apenas, a pro­cura, a única procura por um tacacá, com pouca pimenta ou muita e bem quente.
 Depois, é preciso que haja um banco. Tacacá toma-se sentado para que o corpo repouse e possa se entregar completamente ao prazer de saboreá-lo. Porque o tacacá é extremamente absorvente. Quando bem feito, o que ocorre pouco. Pois fazê-lo e tomá-lo é uma arte.
  É preciso, também, que a noite desponte ao chegarmos junto ao carrinho de tacacá. E comece a chover, levemente. Faça algo de frio, algo de úmido. O que não é difícil em Belém. Depois, como estamos cansados e queremos esquecer, esperamos. Uma paciência longa e calma, até que a dona do tacacá termine por prepará-lo. De preferência que seja em Nazaré ou olhando a Igreja da Trindade. É preciso que o tucupi seja
 leve, amarelo-canário e novo. Que a goma bóie no líquido, espalhada por acaso e se mostre apenas por alguns instantes; que não haja muita folha; que os três ou quatro camarões sejam médios, nem grandes demais ou minúsculo e somente uma parte deles apareça, a ligeira carne rósea a deixar-se entrever, adivinhar-se na cuia olorosa. Depois, é preciso que haja sal e pimenta de cheiro, mas não em demasia; o suficiente para nos queimar a alma nos primeiros goles e reanimar o corpo; então renascemos para a noite e a alegria novamente nos habita. O suficiente apenas para desvanecer seu fervor após esses primeiros goles e tornar-se depois, uma presença quente, já quase uma memória, na ponta da língua.
  É preciso saber tomar o tacacá. Aos primeiros sorvos integralmente seu calor, sua salinidade, seu gosto de mar quente, de arbusto e molusco que os lábios experimen­tam fugidiamente. É preciso que o jambú e os
 camarões pousem lentamente no fundo da cuia e venham à boca, por si mesmos, sem o auxílio dos dedos. É necessário que não sejamos interrompidos. Apenas um aceno de cabeça aos conhecidos que passam. Um filtro mágico que se bebe em silêncio e solidão. Somente a comunicação imperceptível com a tacacazeira: feiticeira moderna numa terra onde as lendas ainda sobrevivem em um mundo que se materializa
 inexoravelmente.
  Chegados ao fim do tacacá, é preciso que o mesmo ainda se conserve morno, assim como o fim de um amor. Jamais frio. Não existe nada pior do que um tacacá frio. É como champanhe sem gelo. Neste momento tomaremos contacto real com as grandes porções maternais de goma penetradas pelo tucupi e pela amargura das folhas. Há sempre um gato gordíssimo perto do carro de uma tacacazeira. Ele comerá,
 displicentemente, as cascas de camarão que atirarmos ao chão. A cuia está vazia.
 Agora, o mais importante: jamais repetir o tacacá, na mesma noite. A segunda cuia nunca devolverá o sabor da primeira.. O primeiro tacacá daquele dia é único, autêntico, original, insubstituível como o gosto do primeiro beijo. Como a primeira entrega de amor. Porque os tecidos de nosso cansaço e de nossos desejos são satis­feitos. Porque foi necessário todo um dia infrutífero e todo um sol de toda uma chuva para alcançá-la. Todo o equívoco das relações humanas, toda a falta de solidariedade, de cortesia, de amizade e de comunicação com os outros.
A decep­ção será fatal se arriscarmos um segundo, fiéis à gula. É preciso permitir-se um resto de fome, um resto de desejo para o dia seguinte, um resto de tristeza intransferível. Quando a baía abrir suas margens de musgo para recolher as asas do dia; quando a lua surgir em seu halo de chuva; quando chegarmos ao fim de nossas tarefas cotidianas, então, novamente, sentiremos na ponta da língua a subtaneidade acre do tucupi.
 Paraenses, não vos espanteis com essa narrativa. O que, para vós é banal e acessí­vel desde a infância, para um sulista é um mistério, uma surpresa e um inédito prazer. Muito comum é o visitante de outro Estado que vem a Belém pela primeira vez e olha, desconfiado, aquele grupo de pessoas ao redor de um carro de tacacá. Os movimentos das mãos da tacacazeira lavando as cuias e servindo-as, Os utensílios tos­cos, rudimentares. O turista, cheio de suspeitas e de teorias anticépticas, recusa-se a prová-la com argumentos de falta de higiene. Procura máquinas a vapor que sequem automáticamente as cuias. Busca torneiras reluzentes de onde jorre um tucupi sintético e insosso; e só encontra aquela magia indígena, obscura, incons­ciente perante a qual recua porque seu coração não possui mais raízes fixas no mistério da natureza. Porque não é mais um homem natural.
 Paraenses, vós desconheceis vossas próprias riquezas. Dia chegará a que o gi­gante levantará a grande cabeça de florestas de seu berço esplêndido e o Brasil será redescoberto (não mais pelos portugueses). O tacacá deixará de ser um usufruto particular e banal. E, em clima frio e chuvoso como o de São Paulo será servido à noite, entre centenas de sessões de cinemas super luxuosos. Milhares de tacacás industrializados, produzidos por intrincados mecanismos de alumínio e aço. E o mistério amazônico perder-se-á para sempre. Será recolhido ao coração de alguma floresta ainda virgem, porém, impenetrável e densa.
 Lá onde os homens não possam mais capturá-lo e bebê-lo, distraidamente, sem amor e sem ritos. Lá onde, enfim, seu selvagem sabor repouse intacto e inacessível no bojo do tempo.

 Esta crônica foi transcrita no livro “A mandioca na Amazônia”, de autoria do engenheiro agrônomo Milton Albuquerque, pesquisador do Instituto Agronômico do Norte, hoje Embrapa, em Belém do Pará, em 1966.