O ego de chuteiras


Artigo de Arthur Dapieve

Qual o problema de o Diego Costa ter optado pela seleção espanhola?

Cresci durante a ditadura. Na escola, havia uma disciplina chamada Educação Moral e Cívica. Estudávamos os símbolos da pátria, sei-lá-mais-o-quê e determinados episódios históricos que, diziam-nos, haviam forjado nossa nacionalidade, como as batalhas dos Guararapes, nas quais portugueses, índios e negros “se irmanaram” contra o invasor holandês. Nossos intelectozinhos não captavam as assimetrias na aliança.
Naquele clima de “ame-o ou deixe-o”, ressuscitado pelos governos do PT, eu era um patriota de calças curtas. A cada nova edição do “Almanaque Abril”, comparava fervorosamente nossos dados com os dos outros países. População, reservas de ferro, renda per capita, PIB. Um vozeirão bradando “Brasi-i-il!” rodava em loop na minha cabecinha. Só mais tarde tomei consciência de que crescíamos sem dividir o bolo.
A nossa seleção havia sido campeã em três das últimas quatro Copas. Nenhuma outra geração tem ideia da sensação do orgulho, poder e segurança que isso nos dava. O esporte era elemento essencial naquele negócio de ser “brasileiro, com muito orgulho, com muito amor”. Sim, esse canto boboca é bem posterior, mas o espírito já existia no começo dos anos 1970, em músicas que faziam propaganda do regime, como “Este é um país que vai pra frente” (“rô, rô, rô, de uma gente amiga e tão contente...”).
Chegou o dia, porém, em que me tornei adolescente e me interessei de verdade por rock. Ali estava uma coisa na qual não podíamos pleitear sermos bons. Fora Rita Lee, Raul Seixas e o grupo O Terço, o produzido no Brasil de meados da década de 70 do século passado tendia ao inexpressivo. Abri-me para o exterior. Retrospectivamente é que percebi como o rock abalou o sentimento de estar num lugar privilegiado.
Só fui viajar ao exterior em 1988, a fim de cobrir o Festival de Veneza para o “Jornal do Brasil”. Navegando pelos canais, entre palácios renascentistas, minhas convicções paroquiais sofreram um duro baque. Não era mais possível afirmar que vivia na cidade mais bonita do mundo diante da existência de Veneza. A mentalidade ufanista teve de abrir, então, a subcategoria “cidade abençoada por Deus e bonita por natureza”.
Desde aquela primeira viagem, que também teve escalas em Roma e Nova York, descobri uma ótima razão para passar o resto da vida no batente: viajar ao exterior nas férias. É o meu luxo, que hoje, felizmente, compartilho com quantidades crescentes de conterrâneos. Oxalá as viagens lhes sejam tão proveitosas quanto foram para mim. De certa distância, aprendemos muito não só sobre os outros como sobre nós mesmos. Na verdade, aprendemos que “os outros” somos “nós mesmos” em diferentes idiomas.
Em 2003, jantei no Bairro Chinês de Barcelona com um pintor equatoriano, comunista das antigas, autoexilado na capital catalã. A horas tantas, ele falou do seu desgosto com o futebol, que afastava os povos por causa de diferenças artificiais — fronteiras, por exemplo — em vez de uni-los em torno das causas de fato importantes — como melhorias em suas condições de vida. Enfim, ele era um internacionalista.
O Brasil tinha acabado de ser pentacampeão do mundo, com a “Família Scolari”, e eu não estava disposto a dar o braço a torcer. Não ainda. Retruquei que a globalização do futebol, obra do capitalismo, colocava em xeque noções de lealdade baseadas em locais de nascimento. Mesmo no pobre esporte praticado no Brasil, nossos ídolos são, cada vez mais, uruguaios, argentinos, paraguaios, chilenos e até sérvios e holandeses. De igual maneira, qual o problema de o Diego Costa ter optado pela seleção espanhola?
Conforme o pachequismo verde-e-amarelo vai inchando com a aproximação da “nossa” Copa do Mundo, tenho pensado muito no porquê de acharmos tão natural torcer automaticamente por Neymar e não por Messi, Cristiano Ronaldo, Iniesta ou Yaya Touré. Por que ele nasceu logo ali, em Mogi das Cruzes, e os outros craques nasceram lá em Rosário, Santo António, Fuentealbilla, Bouaké? Isso é tão frágil que me parece cada vez menos sensato torcer por esta ou aquela equipe só com base em bandeiras nacionais. Torcer por clubes é algo distinto: ato de vontade, não imperativo geográfico.
Acredito que há um forte componente ególatra nas formas menos críticas de patriotismo. Foi isso que chamei de seu “marco zero” na coluna passada. Trata-se da pretensão de se achar que determinado pedaço de terra é especial — sempre entendido como superior — apenas e tão somente porque o “eu” veio a se constituir nele, esse “eu” gerado por uma combinação aleatória de tesões, ódios, imigrações, escravidões.
Quando tal pedaço de terra tem mais de 8,5 milhões de quilômetros — a Europa inteira, ou seja, incluindo a Rússia a oeste dos Urais, tem pouco mais de dez milhões de quilômetros — cabe se maravilhar com a proeza da unidade pelo idioma. Mas, hã, bem, ele é português, ou seja, meio espanhol, um pouco árabe... E lá vamos nós de novo. Somos todos estrangeiros. Por isso, hoje torço com moderação.

Fonte: http://oglobo.globo.com/cultura/o-ego-de-chuteiras-11937047 
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