Na Flip, Hatoum lembra pessimismo, política e autocrítica de Graciliano


Milton Hatoum faz conferência de abertura da Flip 2013; ele falou sobre Graciliano Ramos (Foto: Flavio Moraes/G1)Milton Hatoum faz conferência de abertura da Flip 2013; ele falou sobre Graciliano Ramos (Foto: Flavio Moraes/G1)
Na conferência de abertura da 11ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), na noite desta quarta-feira (3), o escritor amazonense Milton Hatoum lembrou-se do Graciliano Ramos (1892-1953) obsessivamente "autocrítico", pessimista ao ponto de questionar um cumprimento como "boa noite" e político responsável com relação a "gastos públicos". Também comparou-o a Machado de Assis, repetindo o termo "pessimismo" e adicionando agora o "niilismo" como qualidade definidora. No vídeo acima, Milton Hatoum fala sobre um trecho do clássico "Vidas secas", de Graciliano Ramos.

Autor ainda de livros como "Angústia", "São Bernardo" e "Memórias do cárcere", Graciliano é o grande homenageado da edição 2013 do evento, que vai até domingo (7) na cidade do litoral sul do Rio de Janeiro. Por isso, foi o tema da palestra de Hatoum, conhecido por obras como “Relato de um certo oriente”, “Dois irmãos” e “Cinzas do norte”.

G1 transmitirá ao vivo todas as mesas da Flip 2013, tanto com áudio traduzido (se a palestra não for em português) quanto com áudio original.
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'Boa noite  por quê?'
Ao entrar no palco, Milton Hatoum disse "boa noite" aos presentes na Tenda dos Autores e fez uma brincadeira, dizendo que Graciliano, ao ouvir tal cumprimento, costumava responder: "Você acha mesmo?". E então definiu o homenageado como "pessimista radical". Para reforçar a avaliação, citou dois outros autores: "Graciliano Ramos tinha fama de ser áspero e intratável como o cacto do poema de Manuel bandeira. Mas um cacto já se humanizando, como disse Murilo Mendes num poema. Era afetuoso entre amigos e parentes, e irônico quando se referia a si mesmo".

Logo em seguida, ainda naquele início do discurso, Hatoum fez referência à atividade política de Graciliano Ramos, que entre 1928 e 1930 foi prefeito de Palmeira dos Índios (AL). Não por acaso, a primeira "obra" lida ao público pelo palestrante durante a conferência de abertura foram dois relatórios de prestação do contas feitos pelo então prefeito.
"São textos muito bem escritos. (...) Há, de fato, cifras e crifrões, mas já aparecem os assuntos de 'Vidas secas', 'São Bernardo' e 'Infância'. Além disso, a crítica, o tom desabusado e irônico, as frases breves já apontam para um estilo", afirmou Hatoum. "Desde 'Caetés', livro de estreia, o narrador problematiza a linguagem, e busca com esforço a lucidez e o rigor, que é avesso à espontaneidade."
Foi recorrente, na conferência, a comparação entre Graciliano e outros autores, notadamente Machado de Assis. "Ele é machadiano pelo tom desabusado, pela linguagem concisa, pela exploração en profundidade de questões sociais e políticas e pela loucura e desajustes de certos personagens", enumerou. "Graciliano nunca submeteu sua obra ficcional à propaganda idelogócia. Mas, à semelhança de Machado, não escamoteou a verdade das relações humanas." Mais tarde, foram citados Guimarães Rosa, Eça de Queiroz, Balzac e Dostoievski.
Miguel Conde, curador da Flip desde o ano passado, na abertura da edição 2013 (Foto: Flavio Moraes/G1)Miguel Conde, curador da Flip, na abertura da
edição 2013 (Foto: Flavio Moraes/G1)
'Romance a prestação'
Hatoum também abordou mais detidamente os livros "São Bernardo, "Vidas secas", "Infância" e "Memórias do cárcere". "A obra de Graciliano surge no contexto de mudanças políticas sociais e culturais." Sobre os personagens e a "modernidade atrasada" da fazenda que serve de cenário à primeira obra, especulou: "Dizem muito sobre o Brasil da década de 1920 e - por que não dizer? - do Brasil de 2013".

Na hora de avaliar "Vidas secas", Hatoum recorreu a Rubem Braga, lendo trechos de um texto do cronista sobre o livro, em que brincava com o fato de poder ser visto como uma coleção de contos autônomos. "Graciliano não fez assim por criação literária, fez por necessidade financeira. Ia escrevendo e vendnendo à prestação. Depois vendeu tudo por atacado. O autor fez, assim, uma nova técnica e romance no Brasil: o romance desmontado."
Por fim, após repisar a "autocrítica obsessiva e implacável ao ponto da soberba" de Graciliano - que não tinha "autoindulgência" ou "sentimentalismo", Milton Hatoum falou que homenageado "igualava-se com humilidade a Fabiano, um herói diminuído sem qualquer grandeza intelectual ou material". Fabiano é o miserável chefe de família de "Vidas secas".
E citou o último parágrafo de um discurso feito por Graciliano Ramos em 27 de outubro de 1942, quando recebeu uma homenagem. Na ocasião, teria se comparado ainda aos personagens Paulo Honório, de "São Bernardo", e Julião Tavares, de "Angústia".
"Ninguém dirá que sou vaidoso referindo-se a estes três indivíduos. É possível que eu tenha semelhança com eles, e que haja, utilizando os recursos capengas, conseguido animá-los", afirmou, autodescrevendo-se como "aparelho registrador". "E nisto não há méritos. Associo-me aos senhores numa demonstração de solidariedade a todos os infelizes que povoam a terra." Hatoum não chegou a dizer se Graciliano desejou qualquer "boa noite" antes do discurso.
Fonte: G1