Anjos e demônios - Por Eduardo Machado


Já disse aqui da minha perplexidade diante das brutalidades que são exibidas com alarde e destaque no noticiário do Rádio, da TV, dos Jornais, da grande mídia em geral, garantindo a audiência dos Datenas da vida, elegendo políticos oportunistas e injetando a dose diária de violência nas veias da plateia dependente, sedenta de sangue.
Sempre me pergunto sobre a origem dessa nossa curiosidade mórbida em torno do mal. No noticiário da TV, por exemplo, desde os programas mundo cão, tipo Brasil Urgente, da Band, ou o Linha Direta, da Record, até os mais comportados, como o Jornal Nacional, da Globo, o que vemos é um desfile diário de acidentes, tragédias, assassinatos, corrupção, balas perdidas, corpos encontrados, câmeras escondidas captando gravando e colocando dentro da nossa casa, dentro da nossa alma, o que de pior a espécie humana é capaz de cometer e produzir.
Seremos isso, um lixo civilizatório, um fracasso da evolução, um equívoco de Deus?
Em busca de respostas para essas questões que me angustiam, leio um artigo brilhante do amigo Leonardo Boff, que me permito compartilhar, na íntegra, com vocês. Ele diz:

“Perversidades sempre existiram na humanidade, mas hoje com a proliferação dos meios de comunicação, algumas ganham relevância e suscitam especial indignação. O caso mais clamoroso, nos inícios de maio de 2014, foi o linchamento da inocente Fabiane Maria de Jesus em Guarujá no litoral paulista. Confundida com uma sequestradora de crianças para efeito de magia negra, foi literalmente estraçalhada e linchada por uma turba de indignados.
Tal fato constitui um desafio para a compreensão, pois vivemos em sociedades ditas civilizadas e dentro delas ocorrem práticas que nos remetem aos tempos de barbárie, quando ainda não havia contrato social nem regras coletivas para garantir uma convivência minimamente humana.
Há uma tradição teórica que tentou elucidar tal fato. Em 1895 Gustave Le Bon escreveu, quiçá por primeiro, um livro sobre a “Psicologia das massas”. Sua tese é que uma multidão, dominada pelo inconsciente, pode formar uma “alma coletiva” e passa a praticar atos perversos que, a “alma individual”, normalmente jamais praticaria.
O norte-americano Henry Melcken, ainda em 1918, escreveu “A Turba” um estudo judicioso sobre o fato e mostra a identificação do grupo com um líder violento ou com uma ideologia de exclusão que ganha então um corpo próprio e, sem controle, deixa irromper o bárbaro que ainda se aninha no ser humano.
Freud em 1921 retomou a questão com o seu “Psicologia das massas e a análise do eu”. Os impulsos de morte, subsistentes no ser humano, dadas certas situações coletivas, diz ele, escapam ao controle do superego (consciência, regras sociais) e aproveitam o espaço liberado para se manifestar em sua virulência. O indivíduo se sente amparado e animado pela multidão para dar vazão à violência escondida dentro dele.
A análise mais instigante foi feita pela filósofa Hannah Arendt. Em 1961 ela acompanhou, em Jerusalém, todo o processo de julgamento do criminoso nazista Adolf Eichamann por crimes contra a humanidade. Arendt escreveu em 1963 um livro que irritou a muitos: “Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalização do mal”. Ela cunhou a expressão “a banalização do mal” e mostrou como a identificação com a figura do “Führer” e as ordens dadas de cima podem levar às piores barbaridades com a consciência mais tranquila do mundo.
Mas não só em Eichmann se expressa a barbárie. Ela também estava presente naqueles judeus que extravasavam seu ódio a ele, exigindo os piores castigos, como expressão também de um mal interno.
Que concluímos disso tudo? Que um conceito realista do ser humano deve incluir também sua desumanidade. Somos sapentes e dementes. Em outras palavras: a barbárie, o crime, o assassinato pertencem ao âmbito do humano.
Demos um dia, há milhares de anos, o salto da animalidade para a humanidade, do inconsciente para o consciente, do impulso destrutivo para a civilização. Mas esse salto ainda não se completou totalmente.
Carregamos dentro de nós, latente, mas sempre atuante, o impulso de morte. A religião, a moral, a educação, o trabalho civilizatório foram os meios que desenvolvemos para pôr sob controle esses demônios que nos habitam. Mas essas instâncias não detém aquela força que possa submeter tais impulsos às regras de uma civilização que procura resolver os problemas humanos com acordos e não com o recurso da violência.
Cumpre reconhecer que vigora em nós, ainda, muita barbárie. Não diria animalidade, pois os animais se regem por impulsos instintivos de preservação da vida e da espécie. Em nós esses impulsos perduram, mas temos condições de conscientizá-los, canalizá-los para tarefas dignas, através de sublimações não destrutivas, como Freud e recentemente, o filósofo René Girard com seu “desejo mimético positivo” tanto insistiram.
Mas ambos se dão conta do caráter misterioso e desafiante da persistência desse lado sombrio (pulsão de morte em dialética com a pulsão de vida) que dramatiza a condição humana e pode levar a fatos irracionais e criminosos como o linchamento de uma pessoa inocente. Todos pensamos nos linchadores. Mas quais seriam os sentimentos de Fabiane Maria de Jesus, sabendo-se inocente e sendo vítima da sanha da multidão que fez “justiça” com suas próprias mãos?
A questão principal não é o Estado ausente e fraco ou o sentimento de impunidade. Tudo isso conta, mas não esclarece o fato da barbaridade. Ela está em nós. E a toda hora no mundo ela ressurge com expressões inomináveis de violência, algumas reveladas pela Comissão da Verdade que analisa as torturas e as abominações praticadas por tranquilos agentes do Estado de terror, implantado no Brasil durante a ditadura militar.
O ser humano é uma equação ainda não resolvida: cloaca de perversidade para usar uma expressão de Pascal e ao mesmo tempo irradiação de bondade de uma Irmã Dulce na Bahia que aliviava os padecimentos dos mais miseráveis. Ambas as realidades cabem dentro desse ser misterioso – o ser humano – que sem deixar de ser humano ainda pode ser desumano.
Temos que completar ainda o salto da barbárie para a plena humanidade. A situação violenta do mundo atual, também contra a Mãe Terra, nos deixa apreensivos sobre a possibilidade de um desfecho feliz deste salto. Só mesmo um Deus nos poderá humanizar. Ele até tentou, mas acabou na cruz. Mas um dos significados da ressurreição é nos dar a esperança que ainda é possível.
Mas para isso precisamos crer e esperar”.

Lúcido e brilhante, sensível e real, Leonardo Boff acalma, um pouco, os nossos medos, mas alerta; há, dentro de cada um de nós, um anjo e um demônio. E temos liberdade para escolher. Lembram da fábula oriental? “O mestre diz ao discípulo: dentro de nós há dois cães em permanente luta. Um é dócil, bondoso, amoroso. O outro é violento, cruel, raivoso. E o discípulo pergunta: qual deles vai ganhar a batalha? E o mestre responde: aquele a quem eu alimentar...”.
Podemos ser anjos uns para os outros. Para isso fomos criados. Mas, no exercício da nossa liberdade, podemos trilhar o caminho oposto, Somos convidados e consagrados ao cuidado do irmão, a começar dos mais necessitados, os preferidos de Deus. É o que há de mais divino e angelical em nós: a capacidade, o desejo de amar e ser amado. Mas o egoísmo é possibilidade real, onipresente, sedutora.
Buscar o Bem, exercitar a bondade em nós e transbordá-la à nossa volta. A ação se encontrando com a vocação, ‘contaminando’ de amor um cotidiano marcado pelas cicatrizes deixadas pelo Mal.
Em nós mora o desejo do outro, da relação, do encontro amoroso, fraternal, que resgata a dignidade humana e nos aproxima do divino. Somos anjos humanos e nossas asas são este desejo de felicidade, paz, justiça. Desejo que nos faz abandonar o solo, onde rasteja a nossa desumanidade, e nos possibilita, ao amar, voar...
Eduardo Machado

21/05/2014