"Visionária", diz sobrinha-neta de Tarsila do Amaral sobre a pintora modernista

Considerada uma das principais referências da cultura brasileira, artista morreu há 50 anos

Na obra
Na obra "Operários", de Tarsila do Amaral, é possível ver a abordagem de temas ainda atuais | Reprodução

Uma das principais pintoras do Brasil, Tarsila do Amaral morreu há exatos 50 anos, em 17 de janeiro de 1973. Ao longo da trajetória, a artista foi figura central na consolidação do movimento modernista, que pregava a ruptura da arte brasileira com o estilo clássico adotado na Europa. 

Tarsila nasceu, em 1º de setembro de 1886, numa família rica de Capivari, no interior de São Paulo. Contemporânea da recém proclamada República, estava inserida em uma sociedade que ainda limitava a liberdade e os direitos das mulheres. O reflexo se deu em seu primeiro casamento, com o fazendeiro André Teixeira Pinto, primo de sua mãe. Com ele, teve a sua única filha, Dulce (1906-1966). 

O desejo por parte de Tarsila de aperfeiçoar o seu conhecimento no campo das artes não foi bem aceito por André Teixeira. Por influência do pai idealista, José Estanislau do Amaral, a futura modernista pede o divórcio e parte para Paris em 1920, aos 34 anos. Na Cidade Luz, estudou na Academia Julian e, na sequência, com o pintor Émile Renard. Anos antes, em São Paulo, chegou a passar pelo ateliê do escultor sueco William Zadig.

Modernistas
Tarsila ainda estava na França quando a Semana de Arte Moderna reuniu, em fevereiro de 1922, artistas e intelectuais no Theatro Municipal da capital paulista. No Velho Continente, a pintora acompanhou, por meio de cartas recebidas, as discussões encabeçadas por artistas, escritores e intelectuais, como Anita Malfatti, Mário de Andrade e Oswald de Andrade, que viria a ser o seu segundo marido. 

A proposta dos chamados "modernistas" era incorporar à produção artística nacional temas que fossem comuns ao cotidiano dos brasileiros - a chamada "brasilidade". Saíram as representações inspiradas nos costumes europeus e entraram as do povo e das paisagens típicas do Brasil. Tarsila do Amaral, a Tarsilinha, conversou com o SBT News sobre o legado da tia-avó, com quem teve contato até a morte, em 1973. 

Modernistas defendiam a ruptura com a arte europeia | Reprodução/SBT

Qual é a sensação de ter o mesmo nome de uma das maiores pintoras do Brasil e, mais do que isso, ser sobrinha dela?
É uma honra, um orgulho tão grande de ter recebido este nome. Só me traz alegria.

Eu imagino que o seu pai tenha sido muito próximo da Tarsila para te dar o nome dela?
Sim. O meu pai também era advogado dela. Ele era um sobrinho querido, estava sempre com ela e cuidava de todos os negócios. Depois veio a ideia de fazer uma homenagem, e eu recebi o nome.

Você nasceu em um tempo em que ela já era a grande Tarsila do Amaral?
Ela já era uma pintora muito importante, mas, realmente, foi nos últimos anos que a Tarsila teve mais destaque, um reconhecimento muito maior.

Dá para falar que nessa época, ela já era uma artista internacional?
Há alguns anos, a Tarsila praticamente não era muito conhecida lá fora. Depois da exposição no MoMA, ela começou a ter um reconhecimento muito grande também fora do Brasil. No Brasil, então, ela foi realmente ficando mais reconhecida. Ela acabou se tornando a "pintora do Brasil", uma pintora popular. Para mim, é muito bonito ver que ela tem esse reconhecimento em praticamente todas as camadas da população brasileira.

Como começou esse trabalho de recuperação, preservação e divulgação da obra da Tarsila?
Depois que ela faleceu, o meu pai começou a cuidar do legado dela. E aí, já há mais de 20 anos, eu comecei a cuidar. Eu me dediquei muito a isso. Foi realmente um trabalho de formiguinha. Há mais de 25 anos, ela não era tão reconhecida. Eu comecei a ir primeiro atrás de exposições que achei que eram importantes para ser conhecidas. E, claro, com as exposições, vêm a mídia. Vocês [jornalistas] são os grandes responsáveis por esse reconhecimento. Nós fizemos também o Catálogo Raisonné, que é uma catalogação geral da obra, e isso deu muita confiabilidade para ela como uma artista. Então, tudo isso foi, aos poucos, fazendo com que o nome dela fosse cada vez mais reconhecido e ela se tornasse esta pintora tão importante.

Muitos quadros dela continuam no exterior. O Abaporu está no MALBA, em Buenos Aires. Você já tentou trazer esses quadros para o Brasil, permanentemente?
Já tivemos tentativas de trazer o Abaporu. Foram feitas ofertas de valores muito expressivos. O Eduardo Constantini, dono do quadro, nunca pensou em vender. Na época, a presidente Dilma Rousseff chegou a falar com ele para tentar comprar o quadro. Enfim, tivemos algumas tentativas, mas ele recusou todas. Ele não vende o quadro. Hoje, acho que vai ser mais difícil porque o quadro foi doado ao MALBA. E é bacana porque o Eduardo fez esse museu e doou todo o acervo dele, é o maior colecionador do mundo de artes latino-americanas.

Você tem conhecimento se alguma obra da Tarsila foi depredada [nas invasões golpistas]?
Que eu saiba não tinha nenhum quadro da minha tia. Infelizmente, poxa, um Di Cavalcanti maravilhoso. Conversei recentemente com a filha dele. É realmente uma indignação muito grande, principalmente para nós que gostamos tanto de arte, cuidamos de acervos públicos, mas eu acho que não tinha nenhum quadro da minha tia.

Você tem alguma memória em que ela fosse simplesmente a Tarsila, e não a Tarsila do Amaral?
Tenho muitas. Por essa proximidade com o meu pai, eu via a minha tia praticamente toda a semana. Eu gostava muito de ir à casa dela, ver todos aqueles quadros. Eu chegava lá e ficava impressionada com as obras. E ela era super carinhosa. Sempre tinha uma palavra doce comigo, um beijo, um abraço, um carinho. Eu tenho as melhores recordações dela. E claro, neste tempo todo que vivi, eu ouvi o meu pai, a minha mãe, a minha madrinha. A minha avó era a melhor amiga dela. Então, eu passei a minha vida ouvindo histórias lindas da minha tia, da bondade, da generosidade. Ela foi realmente uma pessoa maravilhosa. Um ser humano maravilhoso. Eu tenho tudo isso na minha memória e também das pessoas me falando sobre ela. Até hoje, ouço muitas histórias: "Nossa, eu conheci a sua tia, ela foi muito gentil, me deu um presente, fez um desenhinho para mim". Era uma pessoa de quem eu tenho o maior orgulho de ser da família, de ter o nome. Não só pela artista, mas pela pessoa que foi.

Em uma entrevista, na década de 70, Tarsila disse, em referência às transformações da época, "que estavam construindo um mundo diferente do dela". Ao mesmo tempo, quando temos contato hoje com a obra dela, é perceptível que abordava temas que nos são extremamente atuais, como no quadro Operários. Qual é a sua percepção em torno disso?
Ela era uma visionária. Se você olhar as pinturas, acho que estão sendo até um pouco mais compreendidas. Eu lembro que a minha própria avó, que era a melhor amiga dela, falava "desculpe Tarsila, mas eu não gosto do seu quadro Abaporu". Hoje, [a obra] é a mais importante da arte brasileira. Aonde ela vai, é reverenciada. Minha tia foi uma visionária, tem obras que são muito atuais, como Operários, como você citou. Claro que, provavelmente, ela imaginava que o mundo ia mudar ainda mais, como vem mudando, mas eu acho que a obra dela ainda é muito atual.

Esse estranhamento com o Abaporu foi expresso até mesmo pelo Oswald de Andrade, após recebê-lo de presente da Tarsila, não?
Oswald de Andrade era um gênio, e também muito à frente de seu tempo, assim como a minha tia. Quando ele viu o Abaporu, ficou impressionado. Na hora, já compreendeu um pouco aquela figura, fez uma leitura sobre o quadro que, realmente, foi o que o fez ficar tão famoso. O quadro virou um símbolo da antropofagia. Ele fez o Movimento Antropofágico inspirado no Abaporu, um símbolo dessa desconstrução com a cultura europeia, que era a vigente na época. Oswald era muito visionário e ele fez essa interpretação do Abaporu que deu fama para o quadro.

Tarsila do Amaral pintou mais de 80 quadros, com destaque para Abaporu, de 1928 | Reprodução

Mesmo na França, Tarsila soube da Semana de Arte Moderna por meio de cartas enviadas pela Anita Malffati. Elas eram, de fato, amigas?
Na época, eram muito amigas. Depois teve um certo estremecimento, talvez um pouco de ciúmes da Anita com ela. Mas, depois, voltaram a ser muito amigas. E foi a Anita mesmo que falou sobre o movimento, falou sobre a Semana por meio das cartas. Então, a minha tia acabou sabendo, participando do movimento e da Semana, por meio das cartas da Anita. Logo depois, quando ela voltou ao Brasil, em junho [de 1922], a Anita a apresentou ao grupo modernista e ela se integrou. Começou a namorar o Oswald de Andrade, virou um ícone do movimento.

Tarsila também disse que tinha "virado uma atração turística", em São Paulo, e que já falavam dela "como se ela fosse um monumento". Até hoje a Tarsila continua muito popular, e isso ficou expresso na exposição do MASP, que atraiu centenas de pessoas. Tem algo que explica o porquê da Tarsila do Amaral ser tão popular?
É isso mesmo. Aquela exposição no MASP foi uma comoção nacional. Eu acho que a arte dela conversa muito com o povo brasileiro. Ela mesmo dizia que queria ser a "pintora do Brasil". Então, se olharmos a obra dela, fala de Brasil, das cores brasileiras, as cores caipiras, alegres, a paisagem brasileira, a fauna, a flora, o povo brasileiro. Eu acho que isso fez com que ela realmente tocasse o nosso povo. Quadros também como Operários, quadros que as pessoas se identificam. Isso faz muita diferença. E ela também sempre gostou do país dela, sempre o valorizou. Quando você consegue passar isso para uma obra, como ela conseguiu, você se aproxima do povo. Ela é popular e, quanto mais a obra dela for conhecida, mais vai se identificar com o Brasil.

Talvez por ela ser uma uma mulher ocupando um ambiente antes dominado por homens...
Sem dúvida. Ainda hoje, com esse movimento da valorização da mulher, ela acaba sendo um ícone. Não só pela obra, mas também pela vida dela. A vida de uma mulher à frente do seu tempo, e que também sofreu com isso, mas que acabou, também, levando o nome das mulheres para cima no Brasil, no mundo. Eu acho que ela acabou sendo um dos grandes símbolos das mulheres aqui no Brasil. É muito bonita a relação dela com o pai, o meu bisavô. Sem ele, nós não teríamos essa grande artista. Ele era abolicionista, republicano, uma pessoa com a mente mais aberta. Sem o apoio dele, não só financeiro, mas moral, ela não teria se tornado essa grande pintora.

Qual é o maior legado da Tarsila do Amaral para a nossa sociedade?
O Brasil, a valorização do País. Nós temos que amar o nosso País, valorizar todas as nossas coisas. Nós temos coisas tão lindas. Eu acho que isso ela fez, há 100 anos, como ninguém. Isso é um grande legado, uma grande mensagem dela para todos nós. 


Fonte: Jornal Maria Quitéria  

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