Minha mãe em mim



 A saudade chega repentinamente. Não importa onde eu esteja. Ainda que em conversa animada com outras pessoas, ela chega sorrateiramente e me rouba a atenção e me transporta para lugares vividos em companhia de uma pessoa muito especial em minha vida.

            Minha mãe sempre foi uma pessoa muito religiosa, frequentadora diária das celebrações, integrante de todas as associações católicas, as pastorais de hoje. Caracterizá-la como uma beata fervorosa é um grande elogio. Difícil elencar todas as suas atribuições no contexto paroquial. Nós, suas quatro filhas, sempre estávamos com ela. Nas festas tradicionais do Divino Espírito Santo e no Jubileu do Padroeiro do bairro onde morávamos, seu esmero era total. Membro do Coral da Igreja, organizadora das quermesses, professora no Clube de Mães, onde ensinava às pessoas a arte da costura, do bordado, do tricô, do crochê, além da feitura de objetos artesanais. As aulas de culinária ministradas por ela eram as minhas preferidas, pois, sendo a caçula da família, eu sempre ia com ela e podia me deliciar com os quitutes deliciosos que ela preparava

            Era uma pessoa realmente prendada e dedicada ao que fazia. Aprendi com ela o gosto pelo artesanato e o prazer de experimentar receitas de biscoitos, bolos e broas. Lembro-me especialmente de um balão feito de papel de seda multicor e do cheiro e sabor de um biscoito de araruta com coco cuja massa era passada na máquina de moer carne, formando biscoitos com um formato atrativo e de assamento rápido.

            Cantar, enquanto fazia as atividades domésticas, era o seu alegre costume, principalmente, ao passar as roupas. Algumas dessas músicas ainda fazem parte do meu repertório e, ao cantá-las, sinto-me novamente criança, vivendo na casa onde nasci e vivi até os vinte e um anos e para a qual retornei por um período de mais ou menos dez meses, devido à minha primeira gravidez e ao nascimento de meus filhos gêmeos.

            A saudade traz-me momentos de inspiração que permeiam toda a minha existência. Por minha mãe, também herdei o gosto pela escrita, o capricho e a organização dos afazeres em cadernos e livros de anotações, muitos deles com títulos em letras praticamente bordadas,. A pedido dela, alguns foram escritos por mim, tão logo minha caligrafia se fixou como é até hoje, mesmo em suas variantes explicáveis.

            Sempre estive perto de minha mãe, enquanto criança, e muito aprendi com ela. Aprendi que a solidariedade era importante, mesmo que naquele época, fosse chamada de “ato de zelo”. Assim, eu aprendi que fazer mandados para as pessoas que com ela trabalhavam em um lactário, pegar coisas que as pessoas deixavam cair no chão e, até mesmo, dividir o que se estava comendo com outra pessoa, eram atos sublimes e generosos. Aprendi que a Fé realmente é capaz de remover montanhas e nos tirar do sofrimento e da falta de alimentos. Aprendi que portar comigo um terço é indispensável para minha proteção, livrando-me dos males e de possíveis acidentes. Aprendi que Deus se manifesta de diversas maneiras e nas mais inusitadas situações e que preciso apenas estar atenta a essas tão diferenciadas presenças no meu dia a dia.

            Encontro-me com minha mãe diariamente, ao fazer as mesmas orações ensinadas por ela, ao cantar suas músicas preferidas, sejam as católicas ou as populares; ao fazer minhas peças artesanais; ao ler um livro, uma revista, um jornal; ao escrever minhas anotações e criar meus poemas e textos, inspirados na saudade e nas boas lembranças que carrego comigo.

            Minha caixa de memórias é uma antiga caixa de costura. Uma caixa retangular de madeira, semelhante a um estojo com fecho, onde estão guardadas peças que ela utilizava para fazer os moldes das roupas que costurava. Essa caixa é a minha herança e está em meu poder, em uma das estantes de meu ateliê. Esta caixa tem um aroma gostoso, uma fragrância de Mãe. É um perfume tão salutar que me impulsiona a abri-la frequentemente e novamente me sentir com minha Mãe presente em mim, como se jamais o dia de sua partida tivesse acontecido.

            Em uma tarde de agosto, quanto desgosto! Perdi minha proteção, minha origem e minha fonte de ensinamentos. Minha mãe se fora materialmente. As sensações daquele momento ainda confundem a minha mente, tão presentes em mim. A dor da saudade visita-me e me revela uma dor estranha, diferente, mais forte. O maior dissabor já vivido até então. Todas as vezes que penso em sua partida, lágrimas teimosas rolam pelo meu rosto, advindas de um coração dilacerado por uma saudade doída e insistente. Em vão, sinto o desejo de que ela possa estar comigo novamente, para vivermos todos os momentos que não vivemos, para que eu possa contar a ela todos os meus sucessos em minha carreira e como artesã e escritora. Principalmente, para que eu possa apresentar a ela minha família, agora maior, minhas noras, meu genro e, em especial, minha netinha linda, que me fez ascender à posição de vovó e faz de minha mãe bisavó de sua única bisneta.

            Espiritualmente, ela continua comigo, incentivando-me a prosseguir em minha jornada de lutas e de sentimentos, muitas vezes, contraditórios. Quando me sinto muito só e sem direção, faço uma oração pela sua alma e sua resposta vem a mim por meio de meus mais variados sonhos com ela. Ela não me dá diretamente a resposta aos questionamentos que faço. Sua presença em sonhos me conforta e me direciona como se ela estivesse aprovando as decisões que tenho em mente. Suas lembranças e ensinamentos me dão forças. A Fé que com ela aprendi jamais me permite que o desespero venha me atormentar.

            Sou feliz por tudo que vivi com você, Mãe!

            Sou feliz por todas as suas lições de vida!

            Sou feliz pelos caminhos que sigo, pautados na Fé e em suas orientações!

            Sou feliz por ter muito de você e ter podido passar seus ensinamentos para meus filhos!

            Sou feliz pela caixa de costura, que transcende a materialidade e se apresenta a mim como o seu perfume!

            Gratidão por ser sua filha!

            Gratidão por você estar em mim, minha querida Mãe!

            Gratidão eterna!

 

 

Publicado na Antologia Caixa de memórias.Leandro Schulai (organizador) – São Paulo: Andross Editora, 2022. p. 75-78

 

Autoria: Terê Silva

Biografia

 

A escritora e poeta Terê Silva – Terezinha de Jesus da Silva – nasceu e reside em São João del-Rei-MG. Atualmente, exerce a função de suplente do Conselho Fiscal do Instituto Histórico e Geográfico e, pela segunda vez, a função de Primeira Secretária da Academia de Letras, instituições de São João del-Rei. É ta Acadêmica Efetiva da AILAP – Academia Internacional de Letras Poetas Além do Tempo, ocupando a Cadeira Nº 97, cuja Patrona é, por sua indicação e escolha, Bárbara Eliodora Guilhermina da Silveira e Sócia Correspondente da Academia Praisense de Cultura (Letras, Artes, Música), de São Sebastião do Paraíso/MG.. Formada em Letras (UFSJ), pós-graduada em Metologia do Ensino de Ciências – Informática Educativa (UFMG), e formada em Biblioterapia pelo Observatório do Livro e da Leitura (Ribeirão Preto/SP). É aposentada como professora e servidora da Superintendência Regional de Ensino – SRE. Ministrou cursos em diversas cidades de Minas Gerais e do país; coordenou inúmeros projetos e eventos relacionados à educação. Durante muitos anos, coordenou o Núcleo de Tecnologia Educacional – NTE MG-17, na SRE. Escrever é a sua transcendência do real e imanência nele, seu encontro mais íntimo com as manifestações em sua vida. Escreve diariamente nem que seja apenas um verso, uma estrofe, um parágrafo.

Premiações:

Ganhou seu primeiro prêmio em 1967, com uma redação sobre Duque de Caxias – Patrono do Exército Brasileiro, no antigo 4º ano primário, na atual EE. “Tomé Portes del-Rei”; 1º lugar nos concursos promovidos pelas Rádios São João del-Rei e Emboabas:  “Cajamar” e “Eu te amo e vou gritar pra todo mundo ouvir”, respectivamente. Premiada em 2º lugar no concurso promovido pela ATLAS – Academia Tobiense de Letras, de Tobias Barreto/SE, com seu cordel Desengano (2020).

Obras publicadas:

Poesia: Momentos (2004); Transcendência (2005); Véspera (2005); Voo: para onde o coração me levar (2019); As mulheres em mim (2020); Mundo feliz (infantil) (2022).

Em prosa e verso: O espelho do silêncio (2020).

Em 2020, foi selecionada para mais de vinte antologias, de diversas editoras do país e UFRR, por meio de concursos literários, com seus poemas, contos e cordel e em outras mais em 2021 e 2022. Atualmente, está escrevendo seu primeiro livro de crônicas.


Fonte: Jornal Maria Quitéria/Maroel Bispo 

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