PRIMEIRO PLANO - Notícias de Agora
Edição: Paulo Henrique
Deficiente visual relata experiência com o Círio
Imagine andar ruas e mais ruas com os olhos fechados envolto por um oceano de dois milhões de pessoas. Provavelmente, você se sentirá angustiado e curioso para saber o que se passa à sua volta e abrirá os olhos. Nesse Círio, Rosivaldo Rodrigues, 27, passou por essa experiência. Não porque pagava alguma promessa, mas porque é deficiente visual há 12 anos e, apesar de não ser católico, resolveu encarar o trajeto do Círio pela primeira vez.
E o encarou com elegância. Vestia calça e camisa social e nas mãos carregava uma bíblia em Braille – forma de escrita adequada aos cegos. Para guiá-lo, Rosivaldo contou com o auxílio do sobrinho de 11 anos, Sandro Rodrigues. Desde as 6h30, estavam em frente à Sé assistindo tudo de cima, no degrau de uma das escadas de acesso ao palco por onde era feita a celebração pelo arcebispo de Belém, Dom Alberto Taveira. “Estou achando tudo muito bonito, ouço as pessoas cantando. Não é preciso ser católico ou mesmo enxergar para perceber a sintonia. Ela é única”, disse.
A caminhada de fé começa. Rodrigues é atleta profissional do time de futebol de salão para cegos do Pará. Porém, o condicionamento físico adquirido no esporte não se compara à marcha do Círio. Se as dificuldades são grandes para todos, são gigantes para Rosivaldo. “Subida!”, “Descida!” gritava o sobrinho Sandro a cada passo que o atleta dava da rua para calçada e vice-versa. O pequeno guia ainda acrescentava: “Tio, cuidado para não deslizar nos copos d’água”, referindo aos entulhos que se amontoavam nas valas de cada esquina da avenida Presidente Vargas.
Cada vez mais próximo da Santa, o “espreme, espreme” e o “empurra, empurra” aumentavam, assim como o número de ambulantes que passavam cada vez mais rápido com o intuito de vender qualquer coisa que refrescasse os romeiros do calor que fazia já às 9h30. “Estou com sede”, dizia Rosivaldo ao seu guia.
Já estavam ficando cansados. O garoto Sandro não hesitava em reclamar. “Tá muito apertado aqui”. Rosivaldo, ao contrário, estava contente e brincava com a situação. “Para de reclamar, até parece que você que é o cego aqui”. O deficiente visual parecia não se importar com o aperto. Queria “ver” de perto a imagem de Nossa Senhora de Nazaré, mais uma vez. Cortando pelas transversais da avenida Presidente Vargas, chegaram à Serzedelo Corrêa, em frente ao Instituto Estadual de Educação do Pará, IEEP.
O tempo ia passando. De vez em quando, a Cruz Vermelha passava levando todos à sua frente. Rosivaldo retrucava: “Cuidado com o ceguinho aqui”. A multidão se amontoava cada vez mais para assistir à santa, que se aproximava. Muitos começaram a subir em árvores, outros no pequeno muro do IEEP. Alguns pais carregavam seus filhos e senhoras choravam. Dos prédios, a chuva de papel iniciava.
O cego se impressionava com a aglomeração. Sandro orientava o tio. “A Santa está aqui na nossa frente. Estão estendendo a mão na direção dela”, observava o menino. Ao redor, todos rezam de alguma forma. Rosivaldo refletia através da sensibilidade de seu corpo: abaixou a cabeça e, com sorriso no rosto, descreveu: “Sinto todos ao meu redor. O cheiro do suor, o respirar dos choros e o toque das pessoas. Essa emoção me causa arrepio, é muito boa”, dizia. A Santa segue sua procissão e Rosilvado revela: “Não tenho vontade de voltar a enxergar. Tenho várias formas de ver. Gosto de saber como é o interior de tudo”, assegura.
Foi a primeira vez de Rosivaldo Rodrigues. Ele não pagava nenhuma promessa. Talvez não precisasse. Rosivaldo Rodrigues não é diferente dos 2,2 milhões de pessoas que acompanharam o Círio de Nazaré. No final, estava igual aos demais: suado e exausto. Sua forma diferente de “enxergar” o Círio se iguala à essência de todos que vivem de maneira verdadeira a maior demonstração coletiva de fé do mundo, seja de olhos abertos ou de olhos fechados. (Diário do Pará)
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