Airton Souza: o poeta da Amazônia que abraça o mundo e grita por sua terra


***O poeta marabaense Airton Souza é o coordenador do V Anuário da Poesia Paraense e no fim do ano passados esteve em Capanema lançando a quarta edição dessa tão importante seleção de poetas do Estado. A seguir, acompanhem reportagem sobre um dos mais premiados artista das letras, Airton Souza.


Por José Pedro Soares Martins
“A guerra até aumentou o poder que a poesia exerce sobre mim”, disse Guillaume Apollinaire, que lutou na Primeira Guerra até março de 1916 quando foi ferido na cabeça. O poeta que inspiraria o Concretismo e influenciaria outros movimentos de vanguarda morreria a 9 de novembro de 1918, aos 38 anos, vítima de mais uma hecatombe planetária, a Gripe Espanhola que, como a guerra, deixou milhões de mortos.
Pois a guerra de que nos fala outro poeta, na entrevista a seguir, é uma guerra que milhões de brasileiros conheceram ou conhecem muito de perto. É a guerra da pobreza e da fome. “Como poeta eu nasci dentro da fome da mãe, que quase sempre mentia, dizendo que estava sem fome, só porque sabia que a comida não dava para alimentar todos nós”, nos conta um comovido Airton Sousa, em depoimento exclusivo a Pé de moleque.
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Nessa conversa, ele nos revela como foi o duro parto do poeta, fala sobre suas influências e comenta alguns de seus muitos projetos. Claro, dá sua opinião sobre essa região que virou um símbolo de luta central para o futuro da própria civilização planetária, a Amazônia (que ele chama, e logo explica a razão, de Amazônias). Como muitos, o poeta marabaense demonstra muita, mas muita preocupação com o futuro desse gigantesco manancial de vida.
Mas a cultura, e em especial a literatura, é redenção, e Airton Souza sabe disso e demonstra absoluta gratidão com o que os livros têm lhe proporcionado. Recentemente, viveu uma das maiores emoções de sua vida, ao ter sido, por votação popular, um dos dois homenageados na 1ª Festa Literária de Marabá, ao lado da escritora Eliane Soares.
A própria realização da 1ª Festa Literária de Marabá, como parte da Feira Pan-Amazônica do Livro e das Multivozes, que em 2019 chegou à sua 23ª edição, foi um sinal luminoso, brilhando no cenário nacional que tem sido no mínimo turbulento para a criação.
Quarto maior evento do gênero no Brasil, a Feira paraense foi reestruturada para ecoar as vozes indígenas, afro-brasileiras e LGBTQIA+, além das vozes urbanas e de outros grupos sociais e territórios. Apenas da programação de Belém, entre os dias 25 de agosto e 01º de setembro, participaram mais de 400 mil pessoas, que puderam apreciar dezenas de atividades artísticas, debates e palestras de convidados como Conceição Evaristo, Djamila Ribeiro e Xico Sá.
Nos últimos anos a Feira Pan-Amazônica do Livro e das Multivozes se espalhou por outras cidades do estado e neste ano, além das versões de Marabá e Santarém, serão promovidas programações em Santarém (em novembro) e Bragança (em dezembro). A 1ª Festa Literária de Marabá, especificamente, também atraiu milhares de pessoas para o Carajás Centro de Convenções e demais espaços da quarta cidade em população do Pará (atrás apenas de Belém, Ananindeua e Santarém).
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Capa do Livro Infância Retorcida- Publicado em 2012
Como autor homenageado, Airton Souza participou de várias atividades da Festa, mantendo contato direto com o público e com muitos colegas de escrita que admira. Ele já tem uma carreira de destaque. São mais de 35 livros publicados (algumas capas ilustram esta entrevista) e mais de 60 premiações, em concursos literários por todo Brasil. Na 1ª Festa Literária de Marabá lançou dois títulos: “Anotações para um esquecido Deus dentro de nós”, vencedor do Prêmio Literatura e Fechadura, concorrendo com mais de 200 livros, e  “O infinito inteiro dentro dos seus olhos”, que conquistou quatro prêmios literários e é dedicado ao público juvenil.
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Terminada a Festa, voltou à sua rotina, de ler e escrever muito. De uma coisa ele não abre mão. Aos domingos, está sempre com sua Barraca Literária na Feira do Pôr do Sol, às margens do Rio Tocantins. Cultura e natureza em comunhão em Airton Souza, poeta das Amazônias.
Capa do livro à boca da noite - Publicado em 2013
Pé de moleque – Como foi o parto do poeta Airton Souza, hoje um dos grandes nomes da poesia amazônida? Você se sente influenciado por algum ou alguns nomes ou correntes estéticas?
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Airton Souza – Eu sou filho de uma família extremamente pobre. Meus pais, ambos falecidos, eram retirantes, migraram do Nordeste para o Norte, em busca de sobreviver. Eu nasci nesse lado extremo da Amazônia no período da corrida do ouro, em Serra Pelada, que na década de 1980, era o maior garimpo a céu aberto do mundo. Para não passar fome, meus pais analfabetos foram trabalhando em várias frentes de trabalhos que era possível atuar neste espaço. Minha mãe, por exemplo, aprendeu a bancar o jogo do bicho e por mais de 20 anos comprou comida para nos alimentar com essa tarefa, além disso, foi lavadeira.  Meu pai fez de tudo um pouco na vida, desde administrar um ‘buteco’, foi dono de cabarés, e foi ainda carpinteiro e morreu pedreiro.
É dessa condição extrema que surge o poeta Airton Souza. Costumo dizer que a vida fez-me poeta. Toda a vivência dentro de uma casa de três cômodos para comportar nove pessoas, todas as mazelas sociais e econômicas ensinaram-me a olhar de outras formas para os dias fora dessa casa. É desse espaço físico que parte do imaginário literário recompôs um homem sensivelmente sentimental e que mais tarde aprenderia a se apoderar de uma linguagem que fora negada aos seus descendentes, e com isso, manuseá-la para mostrar que é possível subverter os valores, e como subalterno, poder falar. Que é ainda possível inquirir outras questões sobre o poder.
É possível romper, como bem disse Chimamanda Ngozi, a possibilidade de verdade acerca da história única. Por força de tudo isso eu fiz-me poeta. O meu parto poético parte do mundo, de uma casa de barro, com cinco pés de coqueiros no quintal e um pé de laranja não comestível, porque amargava demais. Esse poeta nasceu a cada dia em que nós tínhamos que abrir mão do único pedaço de carne para que o pai pudesse se alimentar melhor, porque tinha que erguer casas, preparar massas de cimentos, ajustar os prumos, rebocar paredes, ou simplesmente virar a noite acordado servindo bêbados e prostitutas. Como poeta eu nasci dentro da fome da mãe, que quase sempre mentia, dizendo que estava sem fome, só porque sabia que a comida não dava para alimentar todos nós. Ou seja, resumidamente, o poeta é gestado antes mesmo de nascer. Os pés calejados de minha mãe migrando do Nordeste para o Norte e as mãos calejadas de meu pai, construindo casas, depois de aportar no Norte, também migrando do Nordeste, já estavam compondo a parte mais sentimental de minha epiderme. À custa disso, não haveria outra tarefa para mim, a não ser a de poeta.
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Em relação à questão de influência, preciso destacar que muito por conta das condições extremas de pobreza em nossa família minha educação foi selvagemente precária. Por conta disso, fui severamente obrigado a ser um leitor tardio, o que contribuiu para prejudicar a minha escrita, a minha ideia sobre o mundo e sobre a própria imaginação para recriar o mundo na literatura. Como leitor tardio, o poeta nasceu de maneira precária muito antes do leitor. Talvez isso explique a vasta produção literária que se soma a minha vida. Hoje já com 37 livros publicados. Todos eles são parte de um processo precário de aprendizagem.
Por ter surgido o poeta antes do leitor a minha dívida com a escrita de qualidade afeta todos os meus livros. Compondo assim uma limitação em torno do imaginário, da estética, da linguagem, dos símbolos, e de tudo o que é necessário para a escrita de uma literatura considerada pela crítica literária como dotada de valor. Todas as questões ligadas diretamente à relação entre escrita e leitura recaem no processo de influência. Porque a questão da influência está estritamente ligada a essas duas perspectivas. Assim, a minha primeira influência foi à precariedade da vida, da pobreza, da fome, da casa sendo invadida pelas águas durante o inverno amazônico, do menino que apanhou muito em casa simplesmente porque não lembrava aonde tinha esquecido as sandálias.
Mas, eu preciso destacar que todos os livros, sem exceção, influenciaram de alguma maneira e ainda influenciam a minha escrita. Eles tocam, sobremaneira, o meu modo de compreender as literaturas. Não há um único nome que pese em minha ideia de escrita como influência. Por ser um leitor tardio, todos os livros me atingem de algum modo. Todos os escritores e escritoras reverberam em minhas sentenças. Eles e elas estão mergulhados em minhas páginas, porque é a eles e elas que dou as mãos quando delineio traços gráficos em páginas em branco.
Capa do Livro aurorescer
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Pé de moleque – Apesar de muito jovem, você já publicou muitos livros. Como é o desafio de fazer literatura na Amazônia hoje? Você acha que a região tem uma(s) voz(es) própria ou de fato a diversidade da floresta também se reflete na diversidade literária? E como você definiria o seu perfil literário?
 Airton Souza – O grande desafio de fazer literatura nas Amazônias hoje, e penso que sempre fora assim, recai sobre vários aspectos. Não dá para generalizar porque cada poeta, dependendo da Amazônia em que ele ou ela esteja, terá algum desafio específico para enfrentar, e outros desafios que são mais gerais. Penso, por exemplo, que escrever nas Amazônias é muito fácil, quando se quer claro, escrever. Há um mundo para gestar nas páginas e no imaginário sobre as Amazônias. Suas águas, homens, mulheres, os sentimentos, o poder mitológico da terra, possibilitam esta facilidade temática. Há muito sobre o que se escrever nas Amazônias.
O mais cruel dos desafios é fazer com que essa escrita alcance os leitores. Até a questão da publicação dos livros hoje é muito prático. Têm editoras fazendo publicações em baixas tiragens dentro das próprias Amazônias. O problema é fazer com que esse livro seja lido. Só para você ter uma ideia, mesmo vencendo vários prêmios literários, vários editais de publicações de livros e já ter publicado 37 livros a prefeitura da cidade que moro, e que foi o lugar onde nasci, nunca adquiriu um exemplar de qualquer livro meu. E não foi por falta de oferecer os livros não. De promover projetos voltados a promoção do livro e da leitura.
Por várias vezes entreguei ofícios solicitando a aquisição e deixando exemplares para análises. O que me consta é que os pareces técnicos sempre foram e são favoráveis à aquisição, mas o problema estava talvez ou na má vontade ou em outros empecilhos técnicos e financeiros. O certo é que nunca vendi um único exemplar, e todos os exemplares que têm nas bibliotecas e escolas de cidade foram doados por mim. Então, fazer literatura nas Amazônias perpassa por essas questões. Sem falar que o escritor amazônida ou escritora têm que desdobrar-se duas ou três mais que um escritor/a carioca ou paulista, porque historicamente convencionou-se a olhar para nós com muita desconfiança em relação ao valor de nossa produção literária.
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Tenho dito que é uma luta árdua e inglória que os e as escritoras amazônidas enfrentam. Não há outra saída. A glória não existe e não existirá para nós. E alguém a essa altura deve se perguntar: então por que escrever na Amazônia? Eu respondo: primeiro porque a escritura está atrelada a nossa epiderme, é parte de nosso corpo, e, por conseguinte, é também, para lembrar o mestre Antonio Cândido, um direito de todos nós, por isso escrevemos e escreveremos.
Capa do livro último gole de ontem - Publicado em 2015
Sobre a ideia de perfil próprio dessa vasta produção literária é preciso afirmar que a Amazônia são Amazônias, como devem ter percebido. Mesmo o estado do Pará que parece ter uma cultura muito linear é possível perceber que as regiões e as microrregiões vivem em dinâmicas próprias, tanto culturais, quanto identitárias, e não são fixas ou homogêneas. Isso inclui também os aspectos políticos, sociais, econômicas, religiosos, históricos, entre as quais, podemos destacar a própria linguagem e as nossas relações sócio-históricas. Tudo isso influi no perfil da produção literária nas Amazônias. Assim, os elementos urbanos, do campo, ribeirinhos, o imaginário das lendas, a violência e demais questões são partes dos perfis de uma diversidade da produção literária nas Amazônias.
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A minha escrita mesmo, ela é muito, mais muito diversa. Mesmo na poesia que é o gênero literário que mais publiquei livros, há ali uma produção imensa atrelada a diversas temáticas, algumas até mesmo longe do que se pensa sobre a própria Amazônia. Ou seja, a escritura amazônida é tão desconhecida quanto a própria selva/floresta amazônica. A produção literária nas Amazônias é até mesmo desconhecida dentro das próprias geografias amazônidas, isso, por si só, já atestaria a sua diversidade.
Já em relação ao meu perfil literário, por conta da precariedade e da pobreza e por ter sido um leitor tardio, este perfil configura-se dentro de aspectos impossíveis de ser delineados. Nem mesmo eu sou capaz de definir. A extensa produção, as razões que levaram-me a ser poeta, a escassez de livros e de leituras na minha vida contribuíram para moldar um antiperfil literário para mim. É o inominável, e isso não deixa-me amargurado, pelo contrário, consola-me, porque mostra que fui longe demais, dentro das condições de pobreza a que fui criado, e principalmente dentro da condição histórica a que fui submetido. Mesmo assim fui longe ao ponto de ser reconhecido em um shopping, em Marabá, e ser parado para a captura de uma fotografia. Privilégio para poucos escritores/as nas Amazônias. Mas, se alguém com uma faca em minha garganta implorasse pela definição de um perfil de minha poética, mesmo relutando muito e já começando a sentir a navalha a perfurar minha carne, eu gritaria de medo e dor: o perfil de minha escritura é a tristeza! (muitos risos).
Capa do livro mormaços de cinzas - Publicado em 2013
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Pé de moleque – Também já são muitos prêmios em sua trajetória. Qual o papel que você identifica nos prêmios literários hoje?
Airton Souza – Preciso destacar muitas coisas sobre essa questão das mais de 60 premiações que recebi ao longo desses anos, porque toda vez que isso acontece em minha vida eu perpassou e enfrento muitas críticas, muitas mesmo. Inclusive de quem deveria abraçar-me e me aplaudir, irmanando-nos de afeto e reconhecimento, simplesmente por estamos enfrentando as mesmas mazelas na condição de poetas. E são críticas severas, até mesmo sem pudor ou remorso.
Especialmente, e enfrentando todas essas críticas negativas e até certo ponto também depreciativas, eu preciso destacar que foram os prêmios que fizeram com que muitas coisas boas reverberassem em minha vida. Estes prêmios, assim como a literatura, devolveram de maneira definitiva o meu nome de batismo. Apagou um pouco do ranço colonialista que o centro faz questão de manter vivo contra a periferia. De certa forma, os prêmios aproximaram-me de escritores e escritoras que eu admiro muito. Mas, o mais importante dessa questão é que as premiações tornaram-se uma oportunidade de ver vozes periféricas como a minha sendo ouvidas, mesmo a contragosto.
Além disso, toda vez que me inscrevo em algum prêmio, minha intenção primordial é buscar uma oportunidade de ser lido. Lido por muitas pessoas que compõem o júri dessas premiações. Quando acabo vencedor em alguns desses prêmios, outra coisa importante é justamente a relação entre o meu nome e o de minha terra, Marabá, que começa a figurar em um mapa imaginário da literatura no país. Isso motiva-me a continuar essa luta árdua. Então, resumidamente, são muitos os papeis dos prêmios literários.  Talvez tenha sido eles, em parte, que me oportunizaram estar nesse momento concedendo essa entrevista.
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Capa do livro Olhos Vítreos - Publicado em 2015
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Pé de moleque – Você também tem projetos no campo da literatura, além dos livros propriamente ditos, como o Prêmio Amazônia de Literatura. Como vão esses projetos?
Airton Souza – Por acreditar no livro, na leitura e na literatura; por crer que eles são capazes de nos tirar das piores mazelas, e, sobretudo, por estar pagando uma dívida impagável com a literatura e com a leitura, é que desenvolvo vários projetos importantíssimos na Amazônia. Talvez todos esses projetos estejam entre os principais no campo do incentivo direto a leitura, a escrita e o acesso ao livro. Projetos como o Escritor/a na Escola, que leva escritoras e escritores as escolas públicas, com distribuição de livros deles para os alunos/as, Projeto Tocaiunas, que através dele já conseguimos publicar mais de 45 livros solos, de bolso, para ser comercializados ao custo de R$ 5, e que com isso, já foram publicados mais de 17 mil exemplares, Projeto como o Anuário da Poesia Paraense, que resulta todos os anos na publicação de uma antologia poética, com participação exclusivamente de e das poetas paraenses, o próprio prêmio Amazônia de Literatura, entre outros, têm servido para aproximar pessoas em torno de algo em comum, que é o livro, a leitura e a literatura. Todos eles estão em atividade, anualmente. Uma pena que por serem iniciativas particulares, com exceção do Escritor na Escola que hoje é realizado em parceria com a Secretaria de Educação de Itupiranga, possui poucos investimentos. Mas, é o que dá para ir fazendo. Fazendo com muito amor, isso importa bastante.
Capa do Livro A aranha Mariana e uma estória de amor
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Airton Souza – O que você faria como “Ministro da Literatura”, para promover ainda mais a literatura produzida na Amazônia e a formação de novos leitores na região? Lembrando que a região tem uma grande produção literária, com nomes como Inglês de Sousa, Marques de Carvalho, José Veríssimo, Márcio Souza, Milton Hatoum e Thiago de Mello.
Airton Souza – Se fosse dada-me essa tarefa de Ministro da Literatura nas Amazônias, iniciaria os trabalhos de duas maneiras, a primeira delas era tentar atingir com iniciativas voltadas exclusivamente do acesso ao livro as escolas públicas nos municípios das Amazônias. Criando projetos de integração entre os/as escritores/as e a comunidade escolar. Criando projetos de incentivo a escrita, e principalmente um projeto exclusivamente voltado a aquisição de livros, dando apoio assim, as produções literárias.
É preciso urgentemente que as escolas amazônidas criem mecanismos que possam contribuir no intuito primeiro de quê as Amazônias possam ser lidas, e lidas dentro das próprias Amazônias. É preciso urgentemente ser criadas políticas públicas de acesso ao livro nas escolas públicas. Esse trabalho deve atingir incessantemente todos os níveis educacionais, e não como geralmente e precariamente vem acontecendo, aonde o trabalho que é iniciado na educação infantil, quando chega ao nível fundamental é morto. Não há uma continuidade no processo de incentivo a leitura e do acesso ao livro. É como se nos níveis seguintes a leitura e o livro fossem impiedosamente assassinados, e com isso enterra-se a criatividade, o afeto e o imaginário que somente os livros são capazes de manter vivo em nós seres humanos. Com isso, perde-se o senso crítico do mundo, e de quebra, perdem-se vidas, seja por meio da violência, seja por meio da desinformação.
Como Ministro da Literatura nas Amazônias minha tarefa seria a de tentar oportunizar olhares afetivos e de poder sobres as Amazônias. Mostrando que somos capazes de superar, pelos livros e a leitura os mundos que nos compõem como seres humanos. Seria uma tarefa árdua, inglória até certo ponto, mas seria um começo para tentar amenizarmos todas as mazelas sociais, políticas e culturais que nos assolam, sem piedade, todas as horas.
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Capa do Livro Mundico quer ser de ferro
Pé de moleque – Inevitável falar sobre a Amazônia, que foi colocada no centro da agenda global em função da antipolítica para a região promovida pelo governo Bolsonaro. Como natural e morador na região, o que sente desse debate? Qual o futuro da Amazônia na sua opinião, diante das tendências atuais? 
Airton Souza – A verdade é que não deveríamos nunca deixar de falar sobre as Amazônias. Ela é parte da história desse país e vem sendo há mais de 500 anos vista como esse espaço possível de ser explorado. De maneira tendenciosa essa exploração transformou-se rotineira e tem afetado até mesmo as nossas razões indeléveis para com vida. As Amazônias têm diariamente sua paisagem e todos os povos amazônidas explorados até a morte. A sanha do poder e da exploração econômica quer a qualquer custo o nosso corpo, a nossa inteligência e a negação de nossas falas. Quer transformar-nos em objeto de uso à custa do que é rentável para uma elite colonizadora.

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Como natural e morador em um pedaço da Amazônia, eu reconheço, tristemente, que toda essa antipolítica do governo Bolsonaro, de quem sempre fui crítico, tem contribuído de modo sistemático e drástico para expandir muitas mazelas em nossas vidas. Nos últimos meses muitos lugares nas Amazônias estão tornando-se lugares irrespiráveis. O fogo, motivado pelas falas do presidente, digamos que ele tem diariamente, desde a campanha, autorizado isso, vem consumindo todas as formas de vida nas Amazônias. Os noticiários muitas vezes mostram apenas a floresta em chamas, mas esquecem que nós, seres humanos, também estamos morrendo. Morrendo pelo fogo que consome o que é afetivo e necessário as nossas vidas. Por exemplo, as lutas do campesinato nas Amazônias, hoje têm se tornado mais árdua e perigosa. O medo assolam as ruas citadinas, assola o campo, assola as nossas casas, porque há convergência discursiva construída e validada pelo presidente que é preciso ‘metralhar’. Isso lembra-me o poema “A morte do leiteiro”, de Drummond. O nosso drama, é em parte a do leiteiro que tem o sangue de seu corpo misturando-se com os primeiros raios de sol, no amanhecer.
Na condição de professor de história eu tenho discutido muito com os meus alunos as questões em torno das Amazônias. Mostrado a eles as nossas mazelas. Mostrando como políticas e relações de poder tem nos afetado historicamente. Os discursos quase sempre foram estes, o de ocupar as Amazônias, usurpar suas riquezas a qualquer custo e hora. Mas, os que prometem ocupar as Amazônias não falam em seus discursos que isso deverá custa a vida dos amazônidas. Diante de cenários tão desoladores, eu não vejo muitas perspectivas para as Amazônias. O que suponho, e desejo muito estar errado, é que mais tardar, se continuarmos sendo explorados, em demasia, assim, daqui nada mais que 50 anos, grande parte das Amazônias será somente um velho retrato dependurado nas paredes das casas, e como irá doer (Para lembrar novamente o poeta Drummond). Ou seja, não há futuro. As Amazônias e os amazônidas nunca pensaram em futuro. Porque nós vivemos, historicamente, sempre no limiar entre a vida e a morte, à custa do que nos é e sempre foi negado, que é a terra e a vida. O nosso único direito nas Amazônias é o de tentar sobreviver. Olhar para o mundo sempre com as retinas dilatando urgência. Bolsonaro encorajou muitos que pensam como ele. E essa coragem tem nos matado diariamente.

Fonte: Revista Pé de Moleque (Texto e Fotos)

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