A História da Cachaça
Há evidências de produção de destilados de cana-de-açúcar que remetem a 500 a.C. em Taxila, um sítio arqueológico no Paquistão. Por tanto, podemos dizer que um dos primeiros destilados produzidos foi uma forma rudimentar de cachaça. No entanto, mais importante do que apontar a origem precisa da cachaça, está em explicar quais foram os fatores que levaram ao aumento de sua produção e ao ganho de expressão econômica e cultural.
Uma das versões falsas sobre a origem do destilado brasileiro conta que a cachaça teria surgido em Pernambuco quando um escravo, que trabalhava no engenho, deixou armazenada a “cagaça” – um caldo esverdeado e escuro que se forma durante a fervura do caldo da cana. O líquido fermentava naturalmente e, devido às mudanças de temperatura, evaporava e condensava, formando pequenos pingos de cachaça nos tetos do engenho. Inclusive, a origem do sinônimo “pinga” teria surgido dessa versão popular da origem do destilado – uma fantasia.
De certa forma podemos dizer que a história da cachaça começa quando os portugueses trouxeram ao Brasil a cana-de-açúcar e as técnicas de destilação. Em 1502, as primeiras mudas de cana chegaram ao Brasil, trazidas por Gonçalo Coelho. Em Pernambuco, entre 1516 e 1526, o primeiro engenho de açúcar foi instalado na feitoria de Itamaracá. Nas primeiras décadas de presença portuguesa, o número de engenhos no Brasil se multiplicou rapidamente.
Em 1585 existiam 192 engenhos de açúcar no país; alguns anos depois, em 1629, já eram 349 engenhos em atividade. Algumas hipóteses apontam versões mais assertivas sobre as possíveis origens da primeira aguardente brasileira.
A primeira cachaça teria sido destilada entre 1516 e 1532, em algum engenho do litoral; dentre elas, destacamos três:
- em Pernambuco, nas feitorias de Itamaracá, Igarassu e Santa Cruz, entre 1516 e 1526; há registros de importação de açúcar pernambucano para Lisboa em 1526, o que fortalece essa versão;
- em Porto Seguro, Bahia, em 1520, onde há indícios da existência de engenho de açúcar;
- no litoral de São Paulo, entre 1532 e 1534, no Engenho São Jorge dos Erasmos, também conhecido como Engenho do Governador, um empreendimento de quatro portugueses, entre eles Martim Afonso de Souza, e do holandês Johan van Hielst.
Onde moí um engenho, destila um alambique.” – Luís da Câmara Cascudo. Prelúdio da cachaça p. 86
A versão apresentada pelo historiador Luís da Câmara Cascudo, no seu livro Prelúdio da Cachaça, reforça a tesa de que a primeira cachaça foi destilada por volta de 1532 em São Vicente, onde surgiram os primeiros engenhos de açúcar no Brasil.
Apesar dos indícios de produção de aguardente de cana no século XVI, o primeiro documento que oferece mais informações sobre as origens do destilado nacional é do início do século XVII, na Bahia. Mário Souto Maior registra que no livro de contas do Engenho de Nossa Senhora da Purificação de Sergipe do Conde, entre os dias 21 de junho de 1622 e 21 de maio de 1623, foi relatada no cálculo de despesas “Hua *canada de augoa ardente para os negros da levada por v 480”. A aguardente, um sinônimo de destilado, era fabricada no engenho baiano para o consumo dos escravos africanos.
Mesmo diante da imprecisão de data da primeira destilação no Brasil, é possível afirmar que a cachaça foi o primeiro destilado da América a ser feito em larga escala e ter relevância econômica. A motivação para o sucesso dessa indústria estava baseada na perspectiva colonialista e na economia atrelada ao trabalho escravo.
Com o aumento da demanda de mão de obra para os plantations de cana-de- açúcar nas colônias portuguesas, o comércio de escravos tornou-se para os escravagistas europeus uma importante oportunidade de geração de renda. No fim dos séculos XVI e XVII, num período de escassez de moedas, o comércio de escravos na costa africana era realizado pelo escambo por açúcar, tabaco, tecido, vinho e sobretudo destilados como brandy, rum e cachaça.
Diferentemente da cerveja e do vinho, que estragavam durante as longas viagens marítimas, o alto teor alcoólico dos destilados preservava a bebida e possibilitava o transporte de mais álcool, ocupando, dessa forma, menos espaço nas embarcações.
Apenas na capitania de Pernambuco, o crescimento do número de engenhos foi substantivo, demandando também o aumento pela mão de obra escrava nas lavouras: de 23 engenhos em 1570, aumentaram para 77 em 1608. Os números e os registros de escravos traficados são imprecisos, mas servem para entendermos o papel da cachaça nesse momento histórico. Estima-se que nas últimas décadas do século XVI desembarcaram no Brasil entre 10 mil a 15 mil escravos por ano, vindos principalmente de Guiné, Congo e Angola.
“Quem diz açúcar diz Brasil, e quem diz Brasil diz Angola.” – Padre Antônio Vieira (p.339 Sugar Plantations in the formation of Brazilian Society: Bahia, 1550-1835)
No fim do século XVII, a hegemonia do açúcar brasileiro foi quebrada pela produção na América Central com um produto mais barato e de melhor qualidade, controlado por holandeses expulsos do litoral pernambucano. Por lá, os holandeses levaram as técnicas de destilação e contribuíram para o surgimento da indústria da aguardente de cana caribenha – que evoluiu para o que chamamos hoje de rum.
A crise do açúcar brasileiro reorientou as usinas para a produção de cachaça que era utilizada principalmente para consumo interno e para o tráfico de escravos em Angola. Entre 1710 e 1830, estima-se que cerca de 310 mil litros de cachaça foram enviados anualmente para Luanda e que 25% desse volume era trocados por escravos.
É possível afirmar que a indústria da aguardente de cana se consolidou na América pelo seu papel na obtenção da força de trabalho escravo principalmente para produção de açúcar.
Depois dos séculos XVI e XVII, em que houve significativa multiplicação dos alambiques nos engenhos de São Paulo e Pernambuco, a cachaça se espalhou pelo Rio de Janeiro e Minas Gerais devido à descoberta do ouro e pedras preciosas. Durante o século XVIII a economia do açúcar entra em decadência e passa então a ser substituída pela extração de ouro em Minas Gerais. No início da migração para Minas, as cachaças brancas (puras) eram colocadas em barris de madeira para serem transportadas até Minas Gerais. No tempo da viagem, a cachaça, pelo contato com a madeira, acabava amarelando e tomando aromas e sabores próprios. Há quem diga que daí que surgiu o hábito de envelhecer e armazenar cachaças em barris de madeira. Hoje, podemos observar que em cidades litorâneas, como Paraty, há um predomínio de produção de cachaças brancas, enquanto que em Minas Gerais, os produtores optam sempre por armazenar suas cachaças em barris para que elas adquiram características sensoriais, como cor e sabor, provenientes da madeira. Nas regiões de extração estavam também os pequenos alambiques que abasteciam a florescente população urbana que tentava enriquecer com a mineração, apesar dos impostos cobrados pela metrópole portuguesa.
Com a popularidade da cachaça e com o declínio do comércio da bagaceira, novas medidas de taxação e proibição da produção de cachaça foram implantadas pela Coroa. Essas medidas contribuíram para o descontentamento da colônia e motivaram os primeiros ideais independentes, dando origem a Conjuração Mineira e a morte de Tiradentes. Como símbolo dessa luta pela independência do país, a cachaça era servida nas reuniões conspiratórias dos Inconfidentes.
A partir de 1850 com o declínio do trabalho escravo e a intensificação econômica do café, um novo setor social surge no Brasil, os Barões do Café. Com ideais elitistas, fugindo dos hábitos rurais e com uma identificação maior com os produtos e hábitos europeus, a nova elite brasileira rejeitava os produtos nacionais, como a cachaça, tida como coisa sem valor, destinada a pessoas pobres, incultas e, geralmente, negras. Contra esse posicionamento discriminatório, surgem intelectuais, artistas e estudiosos com o compromisso de resgatar a brasilidade criticando com ironia e inteligência a incorporação da cultura e do costume estrangeiro. Em 1922, em São Paulo, é realizada a Semana de Arte Moderna, onde Mário de Andrade, um dos seus maiores expoentes, dedica um estudo chamado Os Eufemismos da Cachaça. No decorrer do século XX, outros importantes intelectuais como Luís da Câmera Cascudo, Gilberto Freire e Mário Souto Maior, estudaram a importância cultural, econômica e história para o Brasil.
Nas últimas décadas, importantes acontecimentos têm contribuído para a valorização da cachaça e seu reconhecimento como patrimônio nacional. Em 1996, o então presidente Fernando Henrique Cardoso legitima a cachaça como produto tipicamente brasileiro, estabelecendo critérios de fabricação e comercialização. Em 2012, uma lei transformou a cachaça em Patrimônio Histórico Cultural do estado do Rio de Janeiro.
Hoje, há mais de 4 mil alambiques espalhados por praticamente todos os estados brasileiros, conseqüência de um fenômeno único próprio do destilado nacional: embora a cultura da cana-de-açúcar tivesse se desenvolvido em grandes latifúndios, a cachaça sempre se caracterizou pela produção artesanal em pequenos alambiques familiares, o que ocasionou a enorme quantidade de marcas de cachaça espalhadas por todo o território brasileiro.
Fonte: Mapa da Cachaça
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