Crenças, mitos, lendas urbanas e outras verdades interioranas


Cronica da Semana - por José Roberto Ichihara


Leitores: peguei carona de algumas postagens no grupo "Amigos de Capanema" e adicionei alguns fragmentos pinçados da memória. Daí escrevi este texto lembrando como fomos educados, ressaltando quais foram as crenças, os mitos e os valores que marcaram a minha infância e adolescência em Capanema.


Os jovens e adolescentes de hoje não fazem ideia do que era viver nos anos 60 numa cidade do interior do Pará. As fontes de consulta eram raríssimas e todo conhecimento, valores intangíveis e formas de diversão eram repassados através das gerações nas famílias. Nas casas, como regra geral, não se permitiam sapatos e sandálias com o solado virado para cima – era pedir a morte da mãe. Comer manga e beber leite, nunca. Muito menos caroço de pupunha e casca de queijo porque deixava a criança ou adolescente rude. Carne de boi na Sexta-Feira Santa, de jeito nenhum! Os poucos que tentaram viram brotar muito sangue no prato, igual a uma hemorragia.

Da porta da casa para os ambientes externos, as crenças e os valores prevaleciam. Responder aos mais velhos e professores (as) era certeza de uma surra quando isso chegasse ao conhecimento dos pais. Aparecer com algum objeto sem justificar a origem... outra surra, seguida de castigo. Comparecer aos sábados, o terrível dia da sabatina na escola, com as unhas compridas e sujas, assim como as orelhas cheias de ceroto... a palmatória comia solta, mesmo que acertasse nas respostas feitas pelos demais colegas. A disciplina era rigorosa e os pais nunca interferiam no método aplicado pelos professores. Muitos ainda se lembram disso com risadas.

Mas nem tudo era aula e convivência familiar. Afinal, toda criança ou adolescente gosta de brincar. Os brinquedos eram baratos, simples, a maior parte fabricada pelos garotos. Nas outras atividades prazerosas, como tomar banho de rio e pescar, o comportamento da maioria seguia a crença herdada dos mais velhos. Pedir licença para a Mãe D’água antes de entrar no rio ou jogar o anzol para fisgar algum peixe. Ai de quem zombasse disso! Muitos foram “flechados” por ela e só ficaram bons depois que a rezadeira suplicou pela cura do desobediente. Beber água da cacimba, usando uma folha dobrada como copo, seguia o ritual de rasgar a folha depois, Senão...

Os momentos dentro de casa também tinham as fantasias que povoaram a memória de muitos. Quando uma borboleta adentrava numa sala era sinal que algo bom ia acontecer. O aparecimento repentino e repetitivo de formigas, em algum cômodo, significava que haveria mudança de alguém ou de toda a família para outra casa. Mas o que ninguém gostava de ouvir era o canto da rasga-mortalha nos arredores do seu lar porque era morte certa de pessoa próxima. Dormir com os pés virados para a rua, jamais – só defunto fica nessa posição numa casa!

A passagem da adolescência para a maioridade também tinha suas crenças. Esfregar a camisa suada no rosto cheio de espinhas era um santo remédio; alguns acreditavam que usar a primeira urina da manhã para lavagem também era batata. Passar o grão de milho no bico do peito inchado e dar para o galo comer, logo cedo, era tiro e queda. O surgimento de pelos pubianos era acelerado com a aplicação de casca de cebola podre na região. Mas o excesso de masturbação devia ser evitado porque fazia nascer pelos nas palmas das mãos. Como não acreditar nisso?

Independentemente da origem e da classe social, o que todos temiam eram as assombrações comentadas pelos adultos. Os casos eram muitos e arrepiavam os cabelos só de ouvir. Figuras horripilantes intimidavam até os mais corajosos das turmas. Por isso, locais como cemitérios e outros conhecidos como mal-assombrados eram evitados. As pessoas temiam mais os mortos que os vivos. Muito depois soube-se que certas aparições assustadoras eram disfarces para encobrir casos extraconjugais, mas quem ia duvidar que a visagem era de mentirinha?

A troca de informações e o ambiente diferente mudaram a visão dos que foram estudar fora, sobre as crenças e mitos na cidadezinha. Afinal, o mundo presenciava uma mudança comportamental da juventude através do rock and roll, das drogas, dos rapazes com longas cabeleiras e do sexo por causa da pílula anticoncepcional. Como ficar indiferente a isso e acreditar que fazer um pedido, ao ver uma estrela caindo no Céu, era a certeza da realização de um desejo? Pouco adiantou, para eles, o slogan dos conservadores “cabelos longos, ideias curtas”. Então...

Sem muitas opções de paquerar as garotas da cidade, qualquer lugar que houvesse uma concentração delas era presença certa dos rapazes. Portanto, a noite do Dia de Finados frente ao único cemitério local ficava lotado. A rua asfaltada, uma das poucas da época, virava uma passarela, com as idas e vindas dos jovens. Choro, acender vela e reza ficavam reservados aos que entravam para matar a saudade dos entes queridos que partiram. Os jovens estavam mais interessados nos que estavam vivos, não importando o lugar que se encontravam no momento.

O que motivou o surgimento de uma rebeldia que desafiava os costumes, os valores e as regras que sempre prevaleceram na comunidade? Nem os fortes argumentos psicológicos empregados (chinelo, galho de goiabeira, cabo de vassoura e cinturão) intimidaram os jovens daquela época. Afinal, a presença no “quarto” era mais para ouvir as piadas e beber o cafezinho que mantinha a vigília no desanimado ambiente. Ninguém externava qualquer comportamento que ofendesse a dor e o sofrimento dos familiares do falecido – era uma busca do ter o que contar.

Qual influência sofreu uma pessoa que acreditou na eficácia de uma vela acesa, dentro de uma cuia, boiando sobre as águas, para localizar com exatidão alguém que morreu afogado e não emergiu? Ou que pisar descalço no piso cimentado, após o ato sexual, era a certeza de contrair a blenorragia? O fato é que esses sobreviventes, especialmente os que tiveram acesso ao conhecimento e ao saber, concluíram que a forma de educar e transmitir valores de épocas remotas moldaram o caráter, mas não impediram os questionamentos sobre assuntos variados.

Adequar o método empregado antigamente à necessidade atual na criação dos filhos é pura perda de tempo. A estrutura familiar não permite isso! As crianças, em número significativamente menor, geralmente não contam com a presença integral dos pais e os espaços livres para brincadeiras são muito diferentes. Os tempos são outros, os costumes e os valores também. Há muitas fontes de informação sobre qualquer assunto, aproximando as pessoas dos quatro cantos do planeta, facilitando a troca de experiências e homogeneizando o comportamento.

Portanto, se alguém não consegue esquecer os métodos empregados na sua formação educacional e familiar, por causa das necessidades da época, argumentando que isso o impediu de olhar para o mundo como deve ser feito... não culpe o passado, mas a incapacidade pessoal de entender que as mudanças são inevitáveis. Nossos pais e professores fizeram o que achavam correto naquele momento. Mas se hoje conseguimos sorrir dos absurdos que nos fizeram acreditar na infância, na adolescência e na juventude... estamos abertos aos novos tempos.

Traumas e más lembranças à parte, o tempo se encarregou de desmistificar muitas crenças que nos forçaram a obedecer, assim como nos livrou de mitos que nortearam nossa infância e adolescência. Quanto de fantasia existia sobre a proibição de apontar para as estrelas no Céu? A punição vinha sob a forma de verrugas na ponta do dedo do herege! O pior era a forma de eliminar os castigos: pingar sobre elas gotas quentes de cera da vela ou do óleo da castanha de caju que estava assando na lata de querosene. Por que sofrer uma dor sem necessidades?

O curioso é que alguns hábitos adquiridos numa época caracterizada pela inocência, mas facilmente descartados numa fase adulta, permanecem entranhados e afloram mecanicamente – o desvirar do sapato e da sandália com o solado para cima. Sabe-se também que muitos ainda conservam a tradição de pedir à benção aos pais. Outros ainda preservam o silêncio absoluto durante as Três Horas de Agonia, sofridos por Jesus Cristo. Se tudo isso parece bobagem atualmente, não há comprovação de prejuízos na vida de alguém por seguir esses costumes.

Seguramente o comportamento das crianças, adolescentes e jovens na cidade é muito diferente de 50 anos atrás - e nem poderia ser de outra forma. Provavelmente não criaram um Museu exibindo os métodos e os recursos convincentes usados na obediência às regras. Mas os remanescentes de uma época carente, difícil e saudosa, guardam na memória e podem contar, ao mesmo público-alvo da atualidade, como a cartilha do “escreveu não leu, pau comeu” se orgulhava da eficiência... sem ressentimentos... porque muitos devem até chorar de tanto rir!

J R Ichihara
*O autor é capanemense, engenheiro e reside atualmente em Natal/RN

Edição: Maikon Douglas
Fonte: Fanpage Amigos de Capanema
Foto: Divulgação 

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